Todos nós tendemos a confiar mais em algumas pessoas do que em outras. Temos amigos aos quais fazemos confidências que não faríamos a nenhuma outra pessoa; temos grupos nos quais confiamos para falar sobre determinados assuntos mas não sobre outros; conhecemos pessoas das quais aceitamos alegremente conselhos sobre qual o melhor carro para comprarmos, mas jamais sobre relacionamentos; e por aí vai.
Geralmente essa confiança é conquistada ao longo do tempo. A pessoa nos dá mostras de podermos confiar nela ou então mostras de que não podemos. Em alguns casos, essa confiança nem é adquirida ao longo do tempo, como, por exemplo, quando alguém em quem confiamos nos indica que Fulano sabe muito sobre carros e deveríamos aceitar seu conselho a respeito. E há ainda aqueles em quem confiamos não por nossa experiência, nem devido à indicação de várias pessoas ou de uma pessoa de confiança, mas porque ocupam posições de autoridade.
Assim, quando aparece uma mancha estranha na nossa pele, geralmente preferimos a opinião de um médico, diplomado e especializado em manchas na pele, à opinião de um estranho na rua.
Isso é absolutamente natural, e fazemos bem de nos comportarmos desta forma. Tendemos a confiar no médico, porque o tal médico, com diploma e doutorado sobre manchas na pele, provavelmente não teria conseguido ser uma autoridade no assunto se não tivesse estudado muito sobre o tema, se não conhecesse mais sobre isso do que a maioria das pessoas e se não tivesse tido um bom desempenho quando o assunto são manchas na pele. É bastante provável que a opinião dele seja mais correta que a minha ou a de um estranho qualquer na rua.
O médico é um bom exemplo, mas nem de perto apenas médicos estão em uma posição de autoridade. A quem tomamos como autoridade varia bastante de pessoa para pessoa, mas outros exemplos comuns de autoridades são os pais, padres, pastores, cientistas, professores, dentre outros.
Embora por um lado façamos bem em confiarmos em autoridades, há um perigoso efeito colateral nisso, tão perigoso a ponto de ser um dos maiores problemas na produção de conhecimento atualmente: tomam-se afirmações de autoridades como sinônimos de verdades, ao invés de se ter a preocupação de analisar a veracidade de afirmações. Autoridades, independentemente da posição que ocupam, não têm poderes especiais que as demais pessoas não tenham e suas afirmações não são, por si mesmas, mais verdadeiras por serem autoridades. No entanto, infelizmente, frequentemente são tratadas desta forma.
Assim, por mais contra-intuitivo que isso possa ser, uma idéia de Freud não tem, por si só, mais valor do que a de um mendigo, nem as de Einstein mais valor do que as de um estudante do ensino médio. O que deve ser analisado é qual o fundamento daquela idéia e quais motivos temos para concordar com ela. O fato de alguém ser uma reconhecida autoridade não elimina a possibilidade de que esteja redondamente enganado.
Uma das coisas que mais me incomodavam na Psicanálise, mesmo quando eu ainda me orientava por ela, é o fato de quase nunca trazerem evidências para suas afirmações. Em quase a totalidade dos casos, psicanalistas recorriam à autoridade (geralmente de Freud, às vezes de Lacan – e este último recorria à autoridade do primeiro), ao invés de trazerem razões para que eu concordasse com eles. Da mesma forma, rejeitavam idéias e colocações de colegas psicanalistas baseados na mesma autoridade: nada poderia ser mais destruidor para a idéia de um psicanalista do que ouvir um colega apontar que Freud pensava diferente ou que Lacan disse que não é assim que aquilo funciona.
Mas, a não ser que estejamos debatendo o que Freud disse (o que tem uma pertinência pequena, apenas de curiosidade histórica), o fato de Freud endossar uma idéia não quer dizer absolutamente nada. Entretanto, a maioria parece não estar ciente deste fato. E elevar a autoridade a critério de verdade é cometer suicídio intelectual.
Ironicamente, o próprio Freud atacou sistematicamente essa prática, de apelo à autoridade. Preocupou-se bastante com psicanalistas que tomavam suas afirmações como verdades e igualmente criticou duramente outras idéias que se apoiavam mais na autoridade do que nos fatos. Por exemplo, ao falar sobre o marxismo, disse:
“O marxismo teórico, tal como foi concebido no bolchevismo russo, adquiriu a energia e o caráter auto-suficiente de uma Weltanschauung; contudo, adquiriu, ao mesmo tempo, uma sinistra semelhança com aquilo contra o que está lutando. Embora sendo originalmente uma parcela da ciência, e construído, em sua implementação, sobre a ciência e a tecnologia, criou uma proibição para o pensamento que é exatamente tão intolerante como o era a religião, no passado. Qualquer exame crítico do marxismo está proibido, dúvidas referentes à sua correção são punidas, do mesmo modo que uma heresia, em outras épocas, era punida pela Igreja Católica. Os escritos de Marx assumiram o lugar da Bíblia e do Alcorão, como fonte de revelação, embora não parecessem estar mais isentos de contradições e obscuridades do que esses antigos livros sagrados.” (FREUD, 1933, p.218)
É de fato uma triste ironia que exatamente o mesmo possa ser dito hoje a respeito da Psicanálise.
Mas esta questão vai muito além da Psicanálise e da Psicologia. De modo geral, alunos não são incentivados a pensar criticamente e a questionar autoridades. Pelo contrário, são ensinados a reproduzir o que os professores dizem. Em casa, os pais também tendem a educar seus filhos de modo que eles sejam obedientes e questionem o mínimo possível sua autoridade. Nas universidades é comum que os alunos simplesmente aceitem o que é dito por um professor por este emanar autoridade, segurança, eloqüência, enfim, porque admiram atributos deste professor. Mas isso nada tem a ver com a veracidade de suas afirmações.
Não aceitar argumentos apenas porque vieram de autoridades talvez seja uma das lições mais importantes a se disseminar. Se recorrer à autoridade pode ter sua funcionalidade – como expus no princípio deste texto – apenas um senso crítico implacável poderá evitar que fiquemos a mercê delas.
Referência;
Conferência XXXV: A Questão de Uma Weltanschauung,1933 In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume XXII. Imago Editora Ltda, Rio de Janeiro, 1976
Talvez tenhamos que conhecer a lógica por trás das afirmações das autoridades para que possamos sinalizar em que ponto do seu raciocínio reside um equívoco. Esse é o principal motivo pelo qual não descarto os estudos/achados da genética comportamental: não domino os métodos utilizados que os permitem chegar a certos resultados e conclusões. Por outro lado, seria ingenuidade tomá-los como a voz da verdade sobre o assunto. Nesse caso, damos (dou) crédito ao que dizem os pesquisadores dessa área do conhecimento (ou sobre outras áreas quaisquer), embora saibamos (sei) que estamos apenas mais próximos de uma descrição razoável de como as coisas funcionam ou que, na verdade, chegamos a conclusões ruins em razão dos métodos -- inadequados -- utilizados em certos estudos. Acho que o perigo maior é quando esses achados, interpretados como hipóteses (p. ex., de que as diferenças de inteligência são mais explicadas pelos genes do que pelo ambiente), combinam bem com aquilo que DESEJAMOS que seja verdade. E isso vale também para o cientista mais cuidadoso.
ResponderExcluirParabéns pelo texto, meu caro. Um abraço.
Interessante o texto! Sobre a questão da autoridade na universidade , ainda existem algumas armadilhas psicolinguísticas usadas no meio acadêmico, como por exemplo o reforço que as pessoas e professores atribuem, dizendo que tal pessoa é muito crítica ou tem boa crítica, quando a pessoa concorda ou adota a visão de um determinado autor.
ResponderExcluirFora que confiar cegamente em autoridades é muito mais cômodo que buscar evidências, né, pessoal? Vai se meter a fazer ciência pra ver o trabalho que dá. Em compensação, pra escrever um artigo psicanalítico, só pegar os volumes de Freud, quem sabe uns de Lacan, e tá beleza.
ResponderExcluirGostei do texto, parabéns.
ResponderExcluirMuito importante a lembrança de que o argumento da autoridade está presente não só nas perspectivas não-científicas de compreensão do mundo, mas mesmo nas científicas, e mais, em toda e qualquer discussão onde um dos dois lados seduz o outro baseado apenas no convencimento por métodos pouco honestos, como falácias, simpatia, coerção, apelo à ignorância etc.
É muito comum ver estudantes serem "moldados" a pensar como seus professores - colegas mais próximos, amigos de bar, veteranos - no início do curso (seja qual for o argumento e a ideologia transmitida), para só depois perceberem (quando percebem!) que foram ludibriados pela crença na autoridade do "especialista".
Obrigado a todos pelos elogios!
ResponderExcluirAgora, partindo para os pontos levantados:
Daniel: "Esse é o principal motivo pelo qual não descarto os estudos/achados da genética comportamental(...)"
Concordo, eu tb não discordo, mas tampouco concordo. Procuro suspender julgamento e, como todo bom cético, não parto disso como um pressuposto até ter razões para isso. Isso quer dizer que permanecerei cético até ter acesso às evidências para suas afirmações por que essas evidências respaldam suas afirmações.
Pedro: Concordo. Há uma inversão de valores aí e os alunos que tendem a coçar as costas dos professores tendem a ter as suas coçadas por estes.
Aline: Sim. É bem mais fácil vc justificar algo através de trechos de autores que concordam com vc ou dão respaldo para sua fala do que de fato buscando evidências para sua afirmação. Vc justifica uma masturbação mental com mais masturbação mental. Em psicanálise, infelizmetne, isso é de praxe.
Marcus: Exatamente. O problema é que poucos percebem. A psicanálise é eficaz nisso porque, ao menos por aqui, envolve também um certo STATUS ser psicanalista ou receber a aprovação de psicanalistas conceituados. Envolve um certo proselitismo intelectual, como se conseguir ser eloquente por aquelas bandas significasse que vc é mais inteligente, mais consciente de sí e do ser humano, mais "profundo".
Mas a "profundeza" é inventada, faz parte da atração literária da psicanálise, como se estivesse explorando um porão cheio de segredos, um submundo, aceitando coisas difíceis de aceitar (sua incompletude, a falta, etc). Mas o rei está nu e tudo isso serve apenas de muleta para justificar sua incompetência.
No fundo, eu tenho mais dó dos clientes do que dos analistas. Usarei uma frase de Lacan, quando este fala de OUTRAS psicoterapias (o que ele odiaria, pois não considera a psicanálise uma) e que, ironicamente, serve justamente para a psicanálise: "Não que ela não possa fazer ALGUM bem, mas conduz ao pior."
Abraço a todos
Excelente!
ResponderExcluirA autoridade é importantíssima para nosso funcionamento em sociedade, como você ilustrou, mas igualmente perigosa, se não tratada com criticismo.
Tanto este quanto o texto do cientificismo deveriam fazer parte do programa de universidades. Quem dera o que você aborda fossem premissas na academia.
E veja, não é apenas nas ciências humanas e sociais não. Sou da área de exatas e vejo estas questões também em minha área.
Parabéns pelos textos!
Obrigado, Marcelo!
ResponderExcluirFico honrado de vc achar que estes textos deveriam ser passados nas universidades.
Modéstia a parte, acho que de fato seria bom se o fizessem. Não pela qualidade do texto em sí, mas pela relevância destes temas. Gerais, mas pertinentes de serem ensinados.
Parabéns pelo texto Pedro, você tem uma escrita bem acessível.
ResponderExcluirVocê levantou uma questão muito importante sobre a autoridade que já sitei em outro texto de meu blog
http://analisefuncional.livrespensadores.org/2010/12/ateu-sim-porque-nao-nasci-como-todos.html
que é o problema de as Agencias de Controle tradicionais não nos darem repertórios críticos e questionadores, mas a apenas copiar o modelo dado pelos lideres dessas agencias, e a relacionar essa pessoa a verdade absoluta.
Marcos: Obrigado! De fato, como a maioria dos textos deste blog visam o público leigo ou universitário, busco uma linguagem acessível mesmo. É mais uma tarefa de divulgação de de princípios básicos do pensamento cético.
ResponderExcluirE li seu texto, muito bom. Certamente dedicarei muito do meu tempo nos próximos anos a analisar a religiosidade sobre o ponto de vista analítico-comportamental. Espero que renda bons frutos.
Abraço!
Oi Pedro.
ResponderExcluirMinha dúvida é sobre argumentação. Quando buscar uma informação de uma autoridade se torna Apelo à Autoridade(falácia)?
Obrigado.