sábado, 18 de janeiro de 2020

Desvendando Roberto Alvim


O vídeo foi uma das coisas mais assustadoras que já assisti. É aquele horror que por vezes é chamado de “o espanto do real”, que é quando algo que sempre foi feito para assustar-nos na ficção aparece bem ali na sua frente, em toda sua assombrosa materialidade (“então as pessoas de fato são capazes de fazer isso!”). Estivesse em um filme ou série, acharia exagerado demais. “Não ficou realista, não ficou sutil. Está óbvio como estão construindo os vilões como nazistas. A filmagem, a trilha, a escolha das palavras, o modo de enunciá-las, o retrato do presidente ao fundo, o nacionalismo assustador, a religiosidade agressiva. Hoje em dia isso não passaria mais. Não foi realista”.
Tomemos essa realidade aí então.
Pois bem, como muito do que é humano e assombroso, Roberto Alvim despertou minha curiosidade. Penso que estudar pessoas e fenômenos que desafiam nossa compreensão e empatia frequentemente desvela muito sobre todos nós e até onde podemos ir. Então quem é Roberto Alvim?
Descobri coisas interessantes, que estão fazendo-me conjecturar que este homem, que hoje parece-nos um paspalho, talvez esteja fazendo o hoax mais incrível e bem-sucedido da história do nosso país.
Acompanhem comigo.

Roberto Alvim era um promissor e precoce diretor e escritor de teatro, muito premiado. Antes de formar já havia sido premiado e, logo depois de formar, ainda muito jovem, tornou-se professor de História do Teatro e Literatura Dramática na CAL, no Rio de Janeiro. Tornou-se diretor artístico do Teatro Carlos Gomes quando tinha apenas 27 anos, assumindo logo após a mesma função no Teatro Ziembinski, de 2005 a 2007. Alvim era muito presente no meio artístico do Rio de Janeiro, amigo de figuras importantes, quando decidiu mudar-se para São Paulo. Lá, instituiu a companhia Club Noir, onde escreveu, adaptou, dirigiu e foi bastante premiado novamente.
Conviveu com a classe artística, fez parceria e recebeu os mais efusivos elogios. Luiz Fernando Ramos, escrevendo para a Folha de São Paulo, considerou a montagem de “Aqui" um “acontecimento extraordinário na dramaturgia brasileira contemporânea”, e a série Peep Classic Ésquilo, com as sete tragédias do autor grego, “um projeto ambicioso que, realizado, aproxima o teatro da grande arte”. Algumas de suas peças, que escreveu ou adaptou, parecem conter reflexões e críticas sociais, inclusive sobre homofobia, preconceito, ganância. Já trabalhou com muitos dos principais nomes da classe artística que também transitam na política, via de regra de esquerda. Trabalhou com Vladimir Safatle, um dos principais nomes da esquerda nacional, que compôs a trilha de uma peça sua, e a quem chamou de “gênio" e “maior filósofo do Brasil”. A própria esposa de Alvim, a atriz de teatro Juliana Galdino, sempre foi presente e elogiada no meio artístico. Sua participação mais notória fora do teatro foi na série da HBO, Magnífica 70, de 2015, que trata justamente sobre a censura à arte durante a ditadura militar no Brasil.
Sua radical mudança política começou a aparecer apenas em 2018, durante o período eleitoral, quando começou a manifestar apoio a Jair Bolsonaro. Tornou-se cada vez mais vocal e passou a adotar abertamente um tom ultra-conservador e profundamente religioso em 2019. O próprio Alvim atribuiu essa mudança a um câncer em 2017, do qual recuperou-se “milagrosamente”. No entanto, tornou-se vocal mesmo sobre esta conversão mais recentemente. Aproximou-se da direita bolsonarista, tornou-se querido por ela em 2019 por ser um dos poucos exemplares da classe artística que se alinhava às ideias bolsonaristas. No segundo semestre de 2019, assumiu o cargo de Secretário Especial da Cultura e já coleciona bizarrices de fazer inveja na mansão de Michael Jackson.
Em junho do ano passado, Alvim fez um post em seu Facebook convocando "artistas de teatro conservadores" para criar uma "máquina de guerra cultural". Em outra postagem, fez um texto dividindo a arte em "arte de esquerda" e "arte de direita”. Após Alvim assumir a direção do Centro de Artes Cênicas da Funarte, artistas de teatro disseram que estavam sofrendo censura do diretor, que proibiu a peça Res Pública 2023, que iria ocupar uma sala do Complexo Cultural Funarte SP. Depois, quando Fernanda Montenegro posicionou-se contra diversos relatos de censura nas artes, Alvim escreveu:
"A 'intocável' Fernanda Montenegro faz uma foto pra capa de uma revista esquerdista vestida de bruxa", escreve Alvim. "Então acuso Fernanda de mentirosa, além de expor meu desprezo por ela, oriundo de sua deliberada distorção abjeta dos fatos", disse ele.
"Na entrevista, [ela] vilipendia a religião da maioria do povo, através de falas carregadas de preconceito e ignorância. Essa foto é ecoada por quase toda a classe artística como sendo um retrato fiel de nosso tempo, em postagens que difamam violentamente o nosso presidente.”


“Religião da maioria do povo”, “NOSSO presidente”. Mein Führer!
Em seguida, Alvim indicou Dante Montovani para a presidência da FUNARTE, que disse que o rock causa aborto e satanismo. E indiciou Sergio Camargo para o comando da Fundação Palmares, cujo objetivo é proteger e promover a cultura negra. Camargo que, ao assumir a Fundação sob Alvim, disse "Racismo real existe nos Estados Unidos. A negrada daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda". Ele também disse que "a escravidão foi terrível, mas benéfica para os descendentes" porque "negros do Brasil vivem melhor que os negros da África".
Chegamos, por fim, ao vídeo recente, onde faz das palavras de Goebbels as suas, utiliza a ópera predileta de Hitler ao fundo e constrói o cenário de modo idêntico à mais famosa foto do ministro nazista. Ao ser confrontado, diz que discorda de várias das ideias de Goebbels, mas que “assina embaixo” o que ele diz sobre arte e cultura, além de ter ele mesmo escolhido a música e os demais elementos do cenário.
Vamos lembrar que Alvim é um dramaturgo, entende de estética, já montou diversas peças muito premiadas. Qual a probabilidade de que ele não soubesse que estava fazendo ali um vídeo de terror que remete ao nazismo? No modo como enuncia as palavras, no enquadramento, no cenário, nas falas. Tudo indica que ele também é uma pessoa razoavelmente culta. Será possível que ele iria ler aquelas palavras e não perceber diversos elementos fortemente associados aos nazismo?
Por isso, em meio ao surrealismo da situação em que nos encontramos, quero aventar com vocês esta hipótese, provavelmente absurda, mas que em tempos tão absurdos parece-me quase brilhante: teria Alvim feito a intervenção artística mais radical e bem-sucedida da nossa história? Será que Alvim fez como Joaquin Phoenix fez por alguns anos, ou como Andy Kauffman fez por mais de uma década, e fez de si mesmo um personagem, para infiltrar-se no bolsonarismo e mostrar até onde eles podem chegar? Será que em breve ele vai trazer relatos, áudios, vídeos de coisas absurdas que ele, em seu personagem, disse e obteve concordância do presidente ou de outras figuras do alto escalão? Será essa a maior intervenção artística de nosso tempo?
Bem, provavelmente não. Mas não custa sonhar. Não custa sonhar que figuras como ele existem apenas como personagens. Que psicóticos paranóicos com delírios perigosos jamais voltariam a posições de poder. Que, em breve, disso tudo sairá o golpe mais forte já dado a ideologias nacionalistas e conservadoras. Que tiraremos daí uma lição para toda a humanidade sobre o perigo de acreditar que o Estado deve ser religioso, sobre como o autoritarismo e a repressão infiltram-se mesmo sob a pele de “liberalismo”. Que será, acima de tudo, uma lição para que a gente jamais, em hipótese alguma, volte a confundir democracia com “ditadura da maioria”.
Não custa sonhar.

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