Charles Sanders Peirce foi o fundador da semiótica, do pragmatismo, além de ser considerado um dos maiores lógicos, matemáticos e filósofos da ciência de todos os tempos. Dediquei um tempo a estudá-lo, cheguei a manter um grupo de estudo de semiótica onde debruçamos quase que exclusivamente sobre sua obra (porque o grupo acabou antes de podermos avançar muito mais).
Escrevi o texto a seguir, onde sintetizo os principais conceitos da semiótica de Peirce, em 2007. Como psicólogo, cansei de ouvir e ler professores e colegas falando sobre sua filosofia sem o menor conhecimento de causa, me incomodando esse uso: Peirce se tornou um coringa intelectual, ao qual pode-se remeter quando quer sustentar uma ideia hermética, já que quase ninguém se deu ao trabalho de lê-lo. Não que eu seja um especialista no autor, mas acredito que esse resumo possa ser um guia básico sobre a construção de sentido para o autor.
Para behavioristas radicais, serve ainda para conhecerem outra faceta do pai do pai do pragmatismo e perceberem como seu pragmatismo jamais chegou perto de blindá-lo do que chamamos de mentalismos.
O que entendemos por conceito é, para Peirce, uma parte da teoria do sentido, que por sua vez procura estudar como é possível compreendermos algo, comunicarmos e até mesmo construirmos ideias. As elaborações de Peirce sobre essa questão são muitas, virtualmente impossíveis de serem condensadas aqui. Cada conceito elaborado, cada neologismo criado para uma atribuição havia uma formulação teórica, que por sua vez culminava em uma análise de cada um dos termos de cada uma destas elaborações a fim de compreendê-la melhor, sendo que não foi em vão que Peirce nunca finalizou sua obra. Assim sendo, seria improdutivo discorrer sobre cada aspecto e cada desdobramento e conceituação de sua teoria do sentido, de modo que iremos focar em sintetizar apenas o que julgamos vital para nossa síntese.
Enquanto a semiologia de Saussure e Hjelmslev dizia que a teoria do sentido deveria ser estudada pela semiologia de maneira pura, ou seja, sem “contaminações” de outras áreas como Filosofia e Sociologia, a semiótica de Peirce abraça as demais áreas do conhecimento e diz que a teoria do sentido só pode ser concebida num corpo filosófico maior.
Assim sendo, Peirce conceituou, indissociavelmente de sua investigação semiótica, seu próprio conceito de psique, mente e consequentemente analisou as atividades humanas. Quando Peirce fala de psique, ele remete à palavra grega psyche que é um termo que representa o princípio da vida nos seres viventes. A psíquica, portanto, seria a ciência preocupada com os fenômenos mentais, ou com as leis, manifestações e produtos da mente. Mente, por sua vez, nada mais é do que a semiose, ou processo de formação de significações.
Peirce acreditava que a semiose era uma manifestação da tendência humana de buscar a verdade. Ele diz que “verdade” é uma atividade (dirigida para um objetivo) capaz de permitir a passagem de um estado de insatisfação para um estado de satisfação, sendo este o motor de nosso comportamento. A busca pela verdade se dá através da lógica, mais especificamente dois tipos de lógica: a logica utens, ou lógica-em-uso, que é a lógica do senso comum, que permite a satisfação das necessidades básicas do ser humano por uma observação não-crítica e pela intuição; e a logica docens, que é a lógica que pode ser ensinada, que constitui um método teoricamente desenvolvido e justificado na busca pela verdade. A partir disso, Peirce reconheceu que Lógica (docens e enquanto disciplina da Filosofia) era apenas outro nome para Semiótica.
A formação de conceito na teoria do sentido peirciano é indissociável da ideia de signo. Vale ressaltar que o modelo de construção de signo peirciano não se limita ao ser humano, mas acredita valer para formas de vida primitiva ou até mecânicas (o que hoje entendemos por inteligência artificial).
Um signo (ou representamen) para Peirce é aquilo que, sob certo aspecto, representa alguma coisa para alguém. Dirigindo-se a essa pessoa, esse primeiro signo criará na mente (ou semiose) dessa pessoa um signo equivalente a si mesmo ou, eventualmente, um signo mais desenvolvido. Este segundo signo criado na mente do receptor recebe a designação de interpretante (que não é o intérprete!), e a coisa representada recebe o nome de objeto. Signo, Interpretante e Objeto constituem o que é chamado de representação triádica do signo.
Cada um dos três elementos dessa tríade tem suas próprias subdivisões e conceituações (signo, por exemplo, tem mais dez tricotomias envolvidas e sessenta e seis (!) classes diferentes de signos) mas, conforme antecipado, não seria prudente (ou útil) dissertar sobre cada um deles. Assim sendo, focaremos na compreensão do Interpretante (ou referência) que é por onde passa sua compreensão sobre a formação de conceitos, já que nosso objeto de estudo não é o signo (o estimulo em si) ou o objeto (o referente, aquilo ao qual o signo realmente diz respeito), mas justamente a formação do conceito pelo indivíduo.
O Interpretante comporta uma divisão tripartite: o Interpretante Imediato corresponde ao Sentido (palavra à qual Peirce continuou preferindo o termo antigo Acepção), o Interpretante Dinâmico equivale ao Significado e o Interpretante Final, à Significação.
Sentido é o efeito total que o signo foi calculado para produzir e que ele produz imediatamente na mente, sem qualquer reflexão prévia; é a Interpretabilidade peculiar ao signo, antes de qualquer intérprete. Significado é o efeito direto realmente produzido no intérprete pelo signo; é aquilo que é concretamente experimentado em cada ato de interpretação, dependendo, portanto, do intérprete e da condição do ato e sendo diferente de outra interpretação. Significação é o efeito produzido pelo signo sobre o intérprete em condições que permitissem ao signo exercitar seu efeito total: é o resultado interpretativo a que todo e qualquer intérprete está destinado a chegar, se o signo receber a suficiente consideração.
Podemos entender assim, que o Sentido ou Interpretante Imediato é uma abstração ou uma possibilidade (o sentido atribuído a uma palavra em geral é registrado no dicionário, ex. “cão”); o Significado ou Interpretante Dinâmico é um evento real, único (o significado de “cão” determinado pelo objeto cão aqui, nesta rua escura) e a Significação ou Interpretante Final é aquilo para o que tende o evento real (diante deste cão, nesta rua escura, a significação deste encontro tende a representar para mim esta ou aquela imagem de natureza psicológica ou sociológica, em função da qual minha reação será esta ou aquela).
Aproximando-nos da conceituação em Peirce, existe ainda uma outra divisão do Interpretante – independente e vertical à divisão anterior – na qual fazem parte o Interpretante Lógico e o Interpretante Emocional.
O Interpretante Lógico diz respeito à compreensão de um sentido relacionado com uma funcionalidade. Essa não é necessariamente uma formulação consciente e racional. Peirce fala da existência de um primeiro interpretante lógico associado com “experiências involuntárias de natureza sugestiva” e com as “idéias instintivas dos animais”, de modo que teríamos neste caso um Interpretante Lógico Imediato. O Interpretante Lógico Dinâmico apresenta-se como um “ensaio dramático” indutivo e ativo, um rearranjo dos elementos levantados pelo Interpretante Lógico Imediato. E o Lógico Final se apresentaria como um hábito deliberadamente formado, inter-relacionando condições e comportamento anteriores, que o signo está calculado para produzir.
Já o Interpretante Emocional não admitiria uma subdivisão: por suas características só pode ser um Interpretante do tipo Imediato. Ele é fundamentalmente a reação emocional que está associada com o signo, devido à história de vida do receptor com aquele signo ou devido a uma reação emocional inata (ou instintiva). Pode ser algo tão simples quanto a “sensação do vermelho” até algo complexo como as diferentes e subseqüentes reações emocionais diante de uma música, com cada signo dela produzindo uma reação que se acumula da próxima e formam juntas uma outra reação total a um signo maior.
Assim sendo, conceito em Peirce pode ser lido como a soma do Interpretante Lógico com o Interpretante Emocional diante de um signo, dando assim contorno ao seu significado e sua significação que, relembrando, é onde todo o processo de construção de sentido culmina, onde todo signo findará.
Um signo, portanto, enviado por um emissor, só formará um conceito para seu receptor através da sua história ou emoção inata com aquele signo, acrescida de sua significação lógica (ou vice-versa).
Que coisa difícil! hehehehe
ResponderExcluirMas após algum esforço, acho que captei um pouco.
Peirce é um erudito ímpar, um precursor e, de fato, um coringa.
ResponderExcluirParabéns pela excelente síntese. Densa, como é inevitável, mas minuciosamente correta.
Muito obrigado! Você acaba de me entregar meu trabalho de semiótica! *risos*
ResponderExcluirMas sério, muito bom, vou usa-lo e passar para colegas. Economiza dezenas de horas de leitura de Peirce.
Muito bom... está muito bom mesmo só discordo com ele ser o Pai do pragmatismo, mas gostei muito do resumo.
ResponderExcluireu li aqui ele se referindo ao Peirce como pai do pai da pragmática. O pai da pragmática foi o James, e o James se inspirou em Peirce. Portanto, Peirce é o pai do pai da pragmática
ResponderExcluirRodrigo Machado, pragmatismo e pragmática não são a mesma coisa.
ResponderExcluirMuito interessante esse texto sobre Pierce.
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