sábado, 14 de julho de 2012

Max

Um (estranho) conto de 2005:



Max 

Fiquei sentado lá durante horas, lendo e relendo, interpretando cada enigma dos jornais. Sentia uma dor terrível nas ancas, o suor em minha calça de linho parecia corroer pedaços de minha perna. Depois de dias varando o tempo com os olhos esbugalhados, decidi tomar as rédeas de meu pensamento: dirigir-me-ia até a máquina de escrever, pegaria aquele pedaço de papel e bateria nas teclas até que me faça entender!
Suporto muito mal a vida, nauseia-me o cheiro dessa cidade, as cores dos móveis, mas nada tão insuportável como os artigos semânticos desses jornais.

Sem sair da cadeira, estico-me até a máquina de escrever e a arrasto até mim, estico-me até o papel e o arrasto até mim. Preparo tudo: máquina, papel, dedos e olhos. Certo. Vamos à guerra...


“Caros senhores, 
Depois de muito meditado se deveria ou não persistir em minhas divagações acerca das verdades dúbias que nos enviam pelo vão da porta, acho que cheguei a uma decisão única, indiscutível e intransponível: vocês não são tolos por opção, mas por uma crueldade do mundo, e eu tenho por dever nominal orientar-lhes pelos caminhos obscuros da nova asserção que suas pupilas, chocadas e confusas, hão de reivindicar como o “Novo Paradigmático”.
Vocês ousam escorregar pelas portas com suas ideiazinhas de pastelaria, roendo as palavras como um veneno de rato, repetindo insistentemente as coerções do duplo golpe fatal/real, tesão/mistério e outros estratagemas militares dessa empreitada verbal. Não escrevem sobre o gozo de entortar-se, sobre as barbas mal-feitas que abrigam insetos, sobre as coceiras que tenho em meu corpo inteiro, sobre a vingança que elaboram na distorção do sentido e como ninguém vê de fato o que passa por debaixo desse mundo. O jornal que vocês publicam, é ad absurdum por excelência e por louvor de desconstrução. Não vejo uma alma sequer escorrendo dele quando o chacoalho pela manhã, tampouco ouço reclamações quando o mastigo.
Decidi, sem revoga, levar o que escrevem um pouco mais a sério. Já adianto: da próxima vez que o jornal escorregar pela minha porta e não houver um traço sequer da nossa nova criação, o “Novo Paradigmático”, escreverei uma carta muito menos amigável, obrigarei todos a verem o quão frouxa é nossa cláusula de não-me-toques, não-me-sujes, não-me-limpes, e que estamos todos perdendo o tempo fazendo parte disso.
É de boa vontade que mantenho-me como estudioso, erudito e observador incauto, mas basta mais um faísca para a fornalha alcançar o teto! Mal sabem a carga que carrego nas costas. De tudo que vi, de tudo que vejo, hoje percevejo.
[O papel estava guardado há muito tempo, e a máquina não tem mais aquele vigor de antigamente]
Despeço-me sem remorso, sabendo que a linearidade cessará assim que o cheiro do papel que esteve comigo passar pela redação. A práxis nunca deve ser reduzida a um estereotipo.
Reforçadamente grato,
Max Kierostam!! “

Demorou alguns dias, mas a resposta chegou. Revi nesse ínterim muita coisa e me orgulho de dizer que me sinto mais palpável do que antes. A resposta confirma que tomei o procedimento correto.

“ Caro Max, 
Estamos muito satisfeitos em saber que pessoas como o senhor acompanham nosso modesto jornal diariamente e que têm uma ligação tão íntima e única com o que escrevemos.
Podemos garantir que suas sugestões foram levadas em questão por aqui, e agradecemos sua preocupação com a qualidade de nossa produção. Agradecemos também pelo papel.
Esperamos que consiga notar uma mudança diária em nossa qualidade, afinal estamos sempre no esforço para melhorar. Esperamos também que já tenha melhorado de suas coceiras. 
Atenciosamente,
A Redação”


Tolos! Nunca entendem nada!

4 comentários:

  1. Hahhahahahahha. Bacana. Sua cara! E me lembra livro que estou lendo no momento também, Jonathan Strange e Mr Norrell... Tipo parecido de humor inglês, só que no seu caso é por puro extravio mesmo. Abraço

    Felipe

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  2. Gostei bastante. Parabéns!
    Tem paixão, sangue no teclado, ao mesmo tempo que tem desorganização e caos, retratando a motivação e a instabilidade do personagem.

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  3. Eu adorei, amor.
    Parabéns!!!

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